Vagaroso para os padrões atuais de velocidade, o meio de transporte remonta a outra contagem de tempo, na qual, como escreveu Theroux, “é o percurso, não a chegada, que importa”. As possibilidades aumentam quando as jornadas incluem localidades acessadas somente por ferrovias, um gostinho de exclusividade diante do turismo pasteurizado. Embora as paisagens voem pelos olhos, não há tanta pressa em ver o mundo passar, e o ócio se torna uma virtude.
Nos trilhos, ao contrário das rodovias, o trajeto é predestinado, sem atalhos, o que pode provocar, em continuidade ao viés romântico, um sentimento de resignação ao futuro, contrário à irritante necessidade de estar sempre no controle, tão presente nos nossos tempos. Em vagões com pernoite, a vivência se aproxima a de se hospedar em um hotel de luxo, com serviço completo de refeições, lazer e bem-estar, incomparável à primeira classe das companhias aéreas. A favor dos trens temos, ainda, o deslocamento com menor emissão de carbono em um meio coletivo – mas, ao mesmo tempo, solitário, se assim o desejar.
ESPÍRITO DO TEMPO NA EUROPA
Vagões da década de 1920, minuciosamente restaurados, revivem a era de ouro das ferrovias. Assim é o Venice Simplon-Orient-Express, pertencente ao portfólio do grupo Belmond. Desde sua viagem inaugural, em 1982, o trem percorre alguns dos principais destinos da Europa, como os vinhedos da França, as colinas da Toscana e da Áustria, os campos de girassóis da Holanda e os coloridos bazares de Istambul.
Inspirada nessas e em outras localidades, o Venice-Simplon traz o zeitgeist europeu para seu interior, a exemplo das seis Grand Suites, batizadas com os nomes de Veneza, Paris, Istambul, Viena, Praga e Budapeste. As referências acolhem vidros venezianos, acessórios bordados em ateliês parisienses, tapetes turcos, a opulência da mobília imperial austríaca, peças do cubo-expressionismo tcheco e móveis de marchetaria húngara. E vem novidade por aí. Para a próxima temporada de verão do Hemisfério Norte, o Venice-Simplon inaugura mais um comboio de suítes, com design art déco.
A atmosfera representativa de outros tempos se estende aos três restaurantes, montados em vagões restaurados de diferentes trens dos anos 1920, com cozinha assinada pelo chef Jean Imbert: o francês Côte d’Azur, que ocupa um vagão construído em 1929 para as viagens de inverno entre Paris e Calais; o L’Oriental, que fica em um vagão inglês inaugurado em 1927 para fazer a rota Paris-Amsterdã; e o Etoile du Nord, instalado em uma carruagem francesa de 1926 que ligou Lisboa a Madri até a década de 1970. Neles, são servidos desjejum, chá da tarde e refeições em três tempos, no almoço e no jantar. Ao pôr do sol, abrem-se as portas do piano-bar 3674, equipado com negronis, martínis, spritzes e todo o tipo de coquetel. Noite adentro, o vagão oferece o “Midnight brunch”, para sedimentar as noites que não têm hora para terminar
VIVÊNCIAS ANDINAS NO PERU
Os trilhos são a maneira mais luxuosa de se aventurar pelo passado inca, no Peru. Primeiro trem de luxo com pernoite da América do Sul, inaugurado em 2017, o Belmond Andean Explorer inicia a rota em Cusco, antiga capital do Império Inca, e segue até Arequipa, percorrendo boa parte da extensão das altas planícies da cordilheira La Raya. O trajeto se complementa com paradas no Lago Titicaca, a 3,8 mil metros de altitude, o curso d’água navegável mais alto do planeta, e no Canhão de Colca, cânion que atinge profundidade de mais de 4 mil metros, o que o torna um dos mais profundos do mundo.
Em contraste com a paisagem muitas vezes inóspita, o azulado Andean Explorer oferece 35 cabines, decoradas com símbolos da etnicidade peruana. Estão lá portas de marfim pintadas à mão, peças de artesanato em madeira, mantas de linho e almofadas de lã de alpaca. Já a referendada culinária fusion marca presença nos dois vagões-restaurante, Llama e Muña, este último batizado com o nome de uma erva calmante andina. O piano-bar Maca também faz referência aos costumes regionais, dessa vez à famosa raiz afrodisíaca encontrada na Cordilheira dos Andes; o lounge abriga, ainda, uma varanda de observação, ponto ideal para se perder em pensamentos, muito bem acompanhado de um pisco-sour. No spa Picaflor (“beija-flor”, em espanhol), os rituais unem produtos de beleza da marca espanhola Germaine de Capuccini à longeva sabedoria inca: destaque para a Signature Experience, que abrange um envoltório de flores locais e folhas de coca, com o intuito de harmonizar corpo e mente.
O CÉU E AS MONTANHAS NO CANADÁ
As nuvens quase tocam os passageiros dos trens da Rocky Mountaineer, cuja visão panorâmica se estende para os tetos de vidro. Como o nome já diz, eles atravessam as Montanhas Rochosas, alargadas por 4,8 mil quilômetros entre o Canadá e os Estados Unidos, trajeto repleto de desfiladeiros dramáticos, rios torrenciais e fiordes cenográficos.
Três rotas estão disponíveis a partir de Vancouver, na costa oeste canadense. Alguns trechos são acessíveis apenas por trem, como o que leva ao Monte Robson, pico mais alto das Rochosas, e a uma visão única da cascata Pyramid Falls. Outro itinerário, iniciado em Vancouver, segue pela ensolarada Horseshoe Bay, rumo a Whistler, que abriga uma das principais estações de esqui do Canadá. Mas logo a paisagem se transforma, com a travessia pelo árido Vale Fraser, circundado pelo rio de mesmo nome, e a chegada a Jasper, vilarejo emoldurado por lagos e montanhas nevadas. Finalmente, o terceiro roteiro leva a Kamloops e Banff, points de trekking, ciclismo e esportes aquáticos, com passagens pelo Lago Shuswap e pela Castle Mountain, monumento natural com aparência medieval. Como plus, é possível percorrer um circuito nos Estados Unidos, entre Moab (Utah) e Denver (Colorado): o grande atrativo está nas falésias vermelhas do Ruby Canyon, que se estendem por aproximadamente 40 quilômetros na fronteira entre os dois estados.
Cada viagem da Rocky Mountaineer varia entre dois a três dias, mas não inclui pernoite – a proposta é que os viajantes se hospedem em hotéis de cada destino. O conforto, porém, não deixa a desejar, sobretudo na categoria Gold Leaf, que serve refeições à la carte na sala de jantar e coquetéis exclusivos.
UMA VOLTA AO PASSADO NA ROTA DA SEDA E NA TRANSIBERIANA
Cerca de 6,4 mil quilômetros integram a Rota da Seda, antigo itinerário de comércio de perfumes, especiarias e, claro, seda. Hoje, a Golden Eagle Luxury Trains refaz o circuito por cinco países – China, Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão e Rússia –, com diversas pausas para conhecer artefatos históricos. Dentre eles, a Grande Muralha, em Pequim; os Guerreiros de Terracota, em Xian; e o Kremlin, em Moscou. As espetaculares paisagens naturais abrangem o Deserto de Gobi, em Dunhuang, China, e a cratera ardente de Darvaza, que queima há mais de 40 anos no Deserto de Kara Kum, no Turcomenistão. Ponto alto também para Samarcanda, no Uzbequistão, epicentro da Rota da Seda e onde viveu o poeta persa Omar Khayyam, autor do poema “Rubayat”.
Outro roteiro impressionante na Ásia é o da Transiberiana, ferrovia de 9,2 mil quilômetros, erguida de 1891 a 1916. O percurso tem início justamente em Moscou, ponto final da Rota da Seda, e termina em Vladivostok. No trajeto, a vista se estende por cenários montanhosos e gelados, a exemplo de Yakutsk, segunda cidade mais fria do mundo, e por locais testemunhas da Revolução Russa, como Novosibirsk, onde a estátua de Lênin repousa em frente à magnífica Ópera House.
A Rota da Seda se divide entre os trens Golden Eagle e Shangri-la Express. A Transiberiana, por sua vez, acontece a bordo do Golden Eagle, com um atrativo extra: na primeira etapa da viagem, os vagões são rebocados por uma locomotiva a vapor P36, produzida na União Soviética na década de 1950. O Golden Eagle recebe os hóspedes em “suítes Imperiais”, com duas grandes janelas panorâmicas. Nos vagões-restaurante e no piano-bar distinguem-se as especialidades russas, como kasha, prato de cereais servido no desjejum; omul, peixe branco encontrado apenas na Sibéria; e esturjão-preto e caviar de salmão, servidos na celebração Caviar Dinner.
EXPEDIÇÕES NAS SAVANAS AFRICANAS
Alternativa aos safáris tradicionais, as viagens de trem no continente africano cortam paragens cênicas e indomáveis. Traçados diversos integram o mapa da Rovos Rail, companhia ferroviária sul-africana em atividade desde a década de 1980, abraçando desde jornadas amenas, como a que circunda a Cidade do Cabo, até as arrojadas, a exemplo da Trilha do Cobre, empreitada de 3,1 mil quilômetros recém-inaugurada entre Zimbábue, Zâmbia, República do Congo e Angola, com direito a visita ao santuário de elefantes de Lusaka, na Zâmbia. É possível ainda fazer um safári ferroviário na Namíbia e conhecer um projeto de conservação de chitas no deserto de Kalahari; ou um “safári de golfe”, no nordeste da África do Sul, que inclui observação de aves e animais selvagens. Sobressai também a peregrinação por 5,8 mil quilômetros sobre trilhos até Dar es Salaam, capital da Tanzânia, percorrendo África do Sul, Botsuana, Zimbábue e Zâmbia.
O décor dos comboios da Rovos Rail segue o estilo vintage, com estofados capitonê em couro nos vagões–restaurante e no lounge – além deles, há um vagão de observação ao ar livre e outro para fumantes. Com paredes revestidas de madeira, as suítes Royal são equipadas com banheira vitoriana. Restrito à África do Sul, o Blue Train faz rotas entre a Cidade do Cabo e Pretória, com parada em Kimberley, cidade mineradora de diamantes; e pelo Parque Nacional Kruger, uma das maiores reservas naturais do continente. A bordo, o viajante pode observar os Big Five – leão, leopardo, elefante, rinoceronte e búfalo – com toda a segurança e conforto, em suítes equipadas com banheira e travesseiros de penas de ganso. Além disso, há mordomos particulares disponíveis 24 horas