
O sotaque é inconfundível e o Brasil inteiro sabe quem fala “que marravilha!” no programa de culinária na TV. Francês de alta linhagem gastronômica, hoje é um carioca/brasileiro genuíno, que conhece o país como poucos a bordo de sua adorada motocicleta. Voa também pelos ares com kitesurfe, pedala bicicletas, malha, percorre trilhas e, a um ano de chegar aos 70, diz com largo sorriso: “Me sinto assim, com 55 anos”.
Claude Troisgros veio da França em novembro de 1979 para tocar a cozinha do restaurante Le Pré Catelan, no então Rio Palácio Hotel, em Copacabana, onde ficou por dois anos, tempo do contrato. Depois, uma vertiginosa carreira começou, desde seu primeiro restaurante no Rio, o Roanne, com 30 metros quadrados, 17 banquinhos, uma cozinha minúscula com fogão doméstico e geladeira usados, até chegar a 24 casas inauguradas ao longo dos últimos 46 anos. E ele quer mais. Filho e sobrinho de dois grandes chefs franceses, Pierre e Jean Troisgros, famosos por suas criações na época da nouvelle cuisine no restaurante em Roanne, às margens do Rio Loire, Claude fala aqui de sua vida agitada nos fogões e na televisão.

Como foi seu início de carreira? O conhecido chef Laurent Suaudeau, também com muito sucesso no Brasil, diz que a primeira tarefa que recebeu do célebre Paul Bocuse foi dar banho nos seus cachorros. Você passou por algo parecido?
É maravilhosa essa história do Laurent. Eu também, meu primeiro trabalho na vida, com 18 anos, foi no Paul Bocuse, em Collonges-au-Mont-d’Or, Lyon, um pouquinho antes do Laurent. E cheguei na cozinha obviamente sem saber muita coisa. A primeira coisa que a gente faz é lavar as panelas; depois passa para o garde manger, que são a salada e os frios; e aí, então, vai para o fogão. Um dia, o Bocuse entrou na cozinha e eu estava certamente fazendo alguma coisa errada no fogão. Ele me mandou imediatamente para a confeitaria, que não era realmente de sobremesas, mas principalmente para preparar o famoso e tradicional prato do Bocuse chamado Loup en croûte, robalo em crosta de massa folhada. Era o que mais vendia no restaurante. Então eu passava o dia recheando e enrolando robalo em massa folhada no formato do peixe lembrando escamas. Essa foi minha punição. Eu acho que eu enrolei mais de mil robalos até alguém cometer outro erro na cozinha e pegar meu lugar.
O que mudou desde que chegou e como vê a cozinha brasileira hoje?
Em 1979 eu não tinha azeite, manteiga, creme de leite, esses produtos típicos da cozinha francesa, mas tinha itens do mercado, frescos, de estação, muito lindos, como maracujá, goiaba, maxixe, quiabo, batata baroa, aipim, e eu incorporei esses produtos brasileiros à técnica francesa. Já se passaram 45 anos e atualmente temos uma cozinha moderna, liderada basicamente por chefs brasileiros. Muitos estudaram lá fora e hoje valorizam realmente o produto e o pequeno produtor do Brasil.
De todos os seus restaurantes, qual é o seu preferido?
Ah, cara, todos eles me dão orgulho. Óbvio, o que marcou a minha vida foi o Olympe, no Jardim Botânico, porque durou 42 anos. Todo o meu trajeto, história e sucesso vêm daquela casa. Mas os restaurantes que me dão mais orgulho atualmente são o Chez Claude no Rio e em São Paulo, onde as cozinhas estão 100% abertas e o cliente pode compartilhar a panela e o fogão com o cozinheiro.
Como foi sua experiência em Nova York?
Eu fui para Nova York há 30 e poucos anos, e abri o restaurante CT, que teve um sucesso enorme — e quando você faz sucesso em Nova York existe uma repercussão mundial. Ele mudou a percepção da minha família, da mídia internacional, e eu fui muito mais valorizado pelos brasileiros. Então, mudou realmente minha vida profissional e pessoal, porque a minha família francesa começou a prestar mais atenção ao Claude, ao Claude filho do Pierre.

O Que Marravilha! virou um clássico e gerou outros programas e spin-offs. Por que acha que fez o público se conectar tanto com ele?
Foi um dos primeiros programas de televisão sobre gastronomia, e o fato de estar junto com meu grande amigo Batista, que trabalha comigo há 45 anos, traz essa coisa descontraída de um francês batendo papo com um brasileiro. Ali abordamos uma gastronomia mais fácil, sem muita técnica, que se aproxima do cozinheiro de casa. E aí se tornou uma marca forte, o que me deixa muito feliz.
No Bistrot du Quartier, em São Paulo, há pratos italianos. Fale um pouco sobre isso.
Não só no Bistrot du Quartier, mas também no Chez Claude [o Bistrot faz parte do complexo gastronômico Le Quartier, que já abrigava o Chez Claude e o Bar du Quartier no bairro do Itaim, em São Paulo. O público brasileiro, principalmente o paulista, tem uma cultura de tradição italiana muito forte. Então, no Bistrot du Quartier eu coloquei essas opções, lembrando que minha mãe é italiana, minha avó cozinhava bem pra caramba e eu fui criado com molho de tomate, manjericão e parmesão! Inclusive estou abrindo um restaurante italiano em Goiânia chamado Cucina Mia.
Qual é seu prato assinatura?
Eu tenho alguns pratos assinatura, não tenho só um. Vou tentar citar os que vendem mais: o peixe com banana e molho de passas, cebola e urucum; o risoto de camarão com espuma trufada de cogumelos; o filé-mignon com crosta de alecrim; o ravióli gigante de batata-baroa; o ovo caviar Clarisse; a crêpe soufflée passion; e o cheesecake de doce de leite com queijo da Canastra.
E seu maior orgulho?
O meu maior orgulho é muito claro: meus dois filhos brasileiros, que continuam a história da família francesa Troisgros e a história da família Claude Troisgros no Brasil. O Thomas, hoje com os restaurantes Toto e Oseille, as lanchonetes T.T. Burger e Marola e agora com o boteco Tijolada, em Ipanema, me deixa muito feliz e orgulhoso. A Carolina também, na confeitaria, agora no Leblon com a antiga Colher de Pau, que vai continuar com o nome. Vê-la crescendo nas mídias, internet, Instagram, lidando com a televisão, e eu acompanhando sua história, é uma grande alegria.

Fora da família, qual chef você mais admira?
Olha, há muitos chefs no mundo que eu admiro. Tem um com 80 e poucos anos, o que é o Eckart Witzigmann, austríaco, que eu amo. E tem outro chef que eu admiro muito, e ele é brasileiro: Rafa Costa e Silva, do Lasai, no Rio de Janeiro. Tecnicamente falando, ele é incrível, sabe usar o sabor brasileiro com uma leveza impecável.
Se um amigo estrangeiro viesse ao Brasil e tivesse um dia para comer bem, onde você o levaria?
Caraca, que pergunta! Eu acho que o levaria ao restaurante de um grande amigo meu, que tem uma história de pescador, num lugar no meio das árvores, com uma vista inacreditável da Restinga de Marambaia. Existe há mais de 40 anos com comida brasileira de muita qualidade, é o Bira de Guaratiba. Incrível.
No ano que vem você faz 70 anos. Pretende continuar na motocicleta e sair easy rider por aí?
Sempre, né? 70 anos, pô, é só o número, porque eu não me sinto com 70 anos. Me sinto assim, com 55. Eu nunca estive tão em forma! Eu malho, ando de bicicleta, faço kitesurfe, ando de moto — e a moto vai continuar até não poder mais. Espero que seja até 80 e pra mais. A moto, para mim, em long ride, é muito importante, acompanhado por um amigo ou, muitas vezes, sozinho. Dentro do meu capacete vivo momentos especiais, só meus, fico filosofando, é muito bom para a minha cabeça e para o meu trabalho.