Em seu poema “Da Calma e do Silêncio”, publicado pela primeira vez em 1990, Conceição Evaristo em certo momento pergunta: “Caminhar para quê?” E pondera: “Nem todo viandante / anda estradas, / há mundos submersos / que só o silêncio / da poesia penetra.”
O camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung conta que, depois que leu esses versos, não viu mais as coisas ao redor do mesmo jeito. E é esse jeito novo de olhar para o mundo que ele pretende dividir com o público de 6 de setembro de 2025 a 11 de janeiro de 2026, na 36ª Bienal de São Paulo, que leva sua assinatura como curador-geral.
Bonaventure encontrou nas palavras de uma das escritoras fundamentais da nossa cultura o eco que precisava para insistir no seu conceito mais caro. Como outros colegas curadores, provenientes da parte sul do globo e que têm se destacado à frente de edições de bienais internacionais, ele também está interessado em nos fazer refletir sobre a violência estrutural do colonialismo, mas acredita que o caminho mais efetivo para uma libertação seja outro.
E se começarmos a pensar que “humanidade” é uma ideia inventada pelo homem? É… assim, de cara, isso soa cabeçudo demais. Mas é mais simples do que parece. E mais divertido, inclusive! Para o curador Bonaventure Ndikung, os discursos sobre política identitária, diversidade e inclusão estão desgastados, viraram slogans bonitos de se repetir e ouvir por aí, mas pouco eficientes na vida real. Sua proposta é transformar a palavra “humanidade” numa espécie de verbo — que a gente coloque em prática, o que abre a possibilidade de reinvenções, renascimentos e renegociações.
ENCONTO DE AFLUENTES
A equipe curatorial da Bienal (que tem como título “Nem todo viandante anda estradas — Da humanidade como prática”) promete receber o público no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, com uma exposição que vibra “alegria, beleza e poesia, as três forças gravitacionais que sustentam o mundo”, nas palavras dos próprios membros da equipe.
E, aqui, dá até para falarmos em mundos, porque há muitos deles coexistindo. Tem o seu e o meu. Tem também um mundo nosso. Tem o mundo humano, o animal, o vegetal, o espiritual. Tem muitas religiões. Tem o Ocidente e o Oriente. Tem as fronteiras políticas entre países. E tem ainda os mundos todos que podem ser inventados e criados. Os mundos que ainda vão nascer. Mundos que estão sendo gestados agora, neste exato momento. Os mundos visíveis e invisíveis. Os mundos que podemos misturar. O universo da arte é especialmente fértil para nos deixar atentos a essa pluralidade toda, que nos escapa no dia a dia. E é disso que essa Bienal trata.
"A intenção dos curadores é de que a gente enxergue os corredores da mostra como afluentes, com cursos d’água próprios e ritmos particulares, mas todos desembocando num mesmo lugar, o que abre possibilidades de encontros, diálogos e transformações."
Para chegar à lista de 120 artistas e coletivos anunciada em meados de junho, Bonaventure Ndikung associou seu trabalho ao movimento das aves migratórias, que cruzam regiões sem entendimento de nacionalidades e territórios. Mas, ele garante que essa ideia não foi definidora das escolhas feitas junto com seus cocuradores: a marroquina Alya Sebti, a suíça Anna Roberta Goetz, os brasileiros Keyna Eleison e Thiago de Paula Souza, além da consultora de comunicação e estratégia, a alemã Henriette Gallus.
Uma vez montada a Bienal, a intenção dos curadores é de que a gente enxergue os corredores da mostra como afluentes, com cursos d’água próprios e ritmos particulares, mas todos desembocando num mesmo lugar, o que abre possibilidades de encontros, diálogos e transformações.
REDES DE AFETO
Entre os participantes estão nomes históricos, caso dos brasileiros Heitor dos Prazeres e Maria Auxiliadora; nomes consagrados, como o alemão Wolfgang Tillmans, o chinês Song Dong, a norte-americana Lynn Hershman Leeson, o japonês Gōzō Yoshimasu e a alemã Isa Genzken; e expoentes da cena contemporânea, como os brasileiros Maxwell Alexandre e Moisés Patrício, a norte-americana Adama Delphine Fawundu e a dominicana Firelei Báez.
Abaixo, destacamos alguns artistas brasileiros que merecem atenção e que estarão na 36ª Bienal de São Paulo. Em ordem alfabética:
Aislan Pankarau
Nascido em Petrolândia, Pernambuco, Aislan é originário do povo indígena Pankararu e dedica-se integralmente às artes visuais, em pinturas, desenhos e instalações com formas orgânicas que podem remeter a células e moléculas do corpo humano, mas que também têm muito das cosmogonias de sua cultura.
Ana Raylander
Nascida em João Monlevade, Minas Gerais, Ana desenvolve projetos em diversos formatos, num diálogo que costura sua história pessoal e nossa história coletiva. Mulher trans, racializada, ela defende suas causas sem se render à vontade do mercado de transformá-la num produto.
Gê Viana
De Santa Luzia, Maranhão, Gê produz colagens e fotomontagens, analógicas e digitais, inspiradas em acontecimentos da vida familiar e do cotidiano, em que confronta as imagens construídas e que entraram para a história do nosso período da colonização.
Obra Quilombo Santa Rosa dos Pretos – Festa da Cabocla Tereza Légua na Crôa de Mãe Severina Silva em Homenagem a São Sebastião e Obrigação de Ano do Serviço de Dois Filhos de Santo “Cavaleiros” do Caboclo Roxo e Caboclo João da Mata, Itapecuru Mirim, MA, 2024, de Gê Viana.
Lidia Lisbôa
De Guaíra, Paraná, Lidia trabalhou em ateliê de alta-costura antes de se tornar artista visual. Suas esculturas têxteis, seus desenhos e trabalhos em cerâmica remetem, na maioria das vezes, a partes do corpo feminino, numa evocação da força e da potência da mulher no mundo.
Moisés Patrícia
Paulistano, Moisés produz fotografias, vídeos, performances, rituais e instalações que lidam com elementos da cultura latina e afro-brasileira. Suas obras fazem alusão ao candomblé, religião em que o sagrado passa pelo corpo e seu potencial físico.
Nádia Taquatry
Nascida em Salvador, Bahia, Nádia cria esculturas com miçangas que remetem a balangandãs, as joias africanas que, além da função de enfeite, tinham um significado espiritual e eram usadas pelas mulheres negras escravizadas na época do Brasil Colônia.
Rebeca Carapiá
Nascida em Salvador, Bahia, Rebeca faz esculturas com metais retorcidos, numa espécie de gramática pessoal, bem particular, formada por contornos orgânicos e signos enigmáticos. Ela criou uma caligrafia própria para falar sobre relações de poder, questões de identidade, memória e pertencimento no Brasil.
Salissa Rosa
Natural de Goiânia, Goiás, Sallisa debruça- se sobre a temática da memória e do esquecimento para nos fazer pensar sobre o futuro. Suas obras, especialmente instalações feitas em espaços públicos, falam de território, natureza e ficção.
Sertão Negro
A casa-escola-ateliê, em Goiânia, é um projeto do artista visual Dalton Paula e de sua companheira, Ceiça Ferreira. O coletivo busca ser um quilombo, um espaço artístico-cultural de vivências e trocas em comunhão com o meio ambiente.
E o endereço tem se destacado cada vez mais no cenário artístico, possibilitando articulações com agentes do mercado das artes em geral, nacionais e internacionais, incluindo curadores, galeristas e colecionadores.



























