A ética, a contemplação e compreensão dos ciclos da natureza e da vida e a não violência contra qualquer ser vivo senciente fazem parte dos princípios elementares do budismo, ou bukkyō, em japonês, religião predominante no país do Sol Nascente, onde quase 70% da população se identifica como budista.
Com base nesses preceitos – mais precisamente do zen-budismo, uma das escolas do budismo mahayana originário da Índia – surgiram algumas das mais belas disciplinas estéticas japonesas: os arranjos florais ikebana, a caligrafia shodō, a arquitetura dos complexos de templos que visava reproduzir a ordem do universo, a cerimônia do chá chanoyu e a alta gastronomia kaiseki, que é um desdobramento do shojin-ryōri, a gastronomia vegetariana dos monges zen-budistas. Artes interconectadas, fundamentadas em conceitos filosóficos profundos e complexos e com quase 1,5 mil anos de história.
Segundo o princípio budista de não violência contra qualquer ser vivo senciente, matar animais para o consumo humano priva o espírito da luz e da purificação e interfere na meditação. Em 675, o quadragésimo imperador do Japão, Tenmu, proibiu o consumo de carne para promover os princípios budistas. Cozinhar shojin-ryōri também tem como significado a assimilação da importância da vida.
Mas os preceitos filosóficos não param por aí. As refeições shojin são pensadas para englobar os cinco gostos: doce, salgado, azedo, amargo e umami (sem qualquer aditivo, só com os ingredientes); os cinco tipos de preparação: cru, grelhado, cozido, frito e ao vapor; os cinco pontos de adequação: temperatura, ingredientes, quantidade, técnicas e hospitalidade, ou seja, com o sentimento adequado; e para estimular os cinco sentidos: a visão, o olfato, o paladar, o tato e a audição.
E, dentro do sentido da visão, é preciso ainda explorar as cinco cores: o branco da farinha e do tōfu, o amarelo das raízes e dos tubérculos, o verde das verduras e frutas, o vermelho do feijão azuki e o preto dos cogumelos e das algas. Tudo isso porque o budismo tem o número 5 como algo místico, já que considera como os cinco elementos da vida a terra, a água, o fogo, o ar e o vazio.
Se para o terror do número cada vez maior de viajantes que não comem animais, no Japão inexiste a discussão sobre vegetarianismo-veganismo, a boa notícia é que dá para ter uma alimentação extremamente sofisticada, 100% à base de plantas, muito nutritiva – e superproteica, por causa dos inúmeros preparos com a soja –, aproveitando os ingredientes de um país onde a agricultura é elevada ao nível de arte e onde a relação com a comida beira a espiritualidade. É possível, ainda, fazer uma imersão cultural em uma gastronomia milenar criada dentro dos mosteiros zen-budistas japoneses. E de forma alguma você precisa ser vegetariano para apreciar o shojin-ryōri.
EM QUIOTO, NA ORIGEM
Com tantos templos – são mais de 1,4 mil templos budistas, sem contar os mais de 600 santuários xintoístas –, o mais incrível em Quioto é poder comer shojin-ryōri dentro desses grandes complexos religiosos, como no Shigetsu, que fica no templo Tenryū-ji; no Daitoku-ji Ikkyu, próximo do templo Daitoku-ji, e, ainda, no Ajiro Honten, em frente ao templo de Myōshin-ji. O ambiente é silencioso e austero, como em grande parte dos restaurantes japoneses. No Daitoku-ji Ikkyu 大徳寺一久, a culinária shojin tem sido preservada desde a sua fundação, há mais de 500 anos, o que o torna um dos templos da gastronomia shojin de Quioto — e do Japão.
A experiência de viver o shojin-ryōri – gastronomia vegetariana dos monges zen-budistas –, mesmo que por algumas horas, nos faz sentir mais próximos do nirvana, da iluminação
O almoço e o jantar (o Daitoku-ji é um dos poucos restaurantes shojin a abrir para jantar, mas só até às 18h) são servidos em salas privativas com vista para o jardim. Espere por pratos que levam namafu, o glúten fresco (e excelente fonte de proteína vegetal), cozido em shōyu; gomadōfu, o “queijo” feito de gergelim e amido de araruta; e o polêmico natto, a soja fermentada de cheiro forte e aspecto viscoso que é a especialidade do restaurante. O natto do Daitoku-ji tem sido produzido pelos monges há muitas gerações e dá para comprar para levar para casa. O conceito filosófico do wabi-sabi – o de que é possível encontrar beleza em tudo, mesmo nas coisas imperfeitas; um exercício de aceitação da irregularidade e
da impermanência – também pode ser encontrado na simplicidade do ambiente do Ajiro Honten 阿じろ 本店, restaurante situado em frente ao templo Myōshin-ji, sede da escola do zen-budismo Rinzai, com mais de 3,4 mil templos pelo Japão. No jantar omakase shojin do Ajiro (só até 19h), o destaque é o yuba, a “nata” do leite de soja. Uma panela cozinha gentilmente a bebida durante o jantar, e você pode comer as películas finas que se formam na superfície do leite de soja quando ele é aquecido. É uma especialidade de Quioto.
No Shigetsu 篩月, que fica dentro do belo templo de Tenryū-ji, em Arashiyama, o almoço é servido em três salas coletivas. Você se senta em fila no tatami, em frente a uma mesinha individual onde é servida sua refeição, em uma bandeja, de uma só vez. No menu, arroz branco, sopa, vegetais da estação, tofu, uma fruta e chá, tudo impecavelmente preparado. Em todos os restaurantes, não só reservas antecipadas são fundamentais como também é preciso escolher, no momento da reserva, o menu que você vai querer comer.
COZINHA VEGANA DE INTENSO SABOR EM QUIOTO
Concebido pelo coletivo artístico teamLab (do museu-instalação Borderless, de Tóquio), o UZU Vegan Ramen é não só um ótimo restaurante – é impressionante o sabor dos caldos dos ramen, a parte mais importante da receita e cujo sabor geralmente é proveniente do longo cozimento de carnes e peixes – como também uma experiência visual e sensorial.
Inaugurado em 2020, o restaurante ocupa uma sala quadrada e escura, onde você come em uma mesa coletiva espelhada, que reflete a projeção de caligrafia que passa em uma das paredes. Com cardápio enxuto, além das receitas de ramen, o UZU tem sushi vegano e dois sabores de sorvete que fazem com que seja difícil acreditar que aquela cremosidade é conseguida sem leite. O UZU Vegan Ramen tem uma filial em Tóquio.
EM TÓQUIO
Na capital do Japão, a gastronomia shojin é elevada ao nível estelar do reconhecimento pelo guia Michelin, e usa bastante os ingredientes provenientes de Quioto. Próximo à Tokyo Tower, o Daigo 醍醐 ficava originalmente dentro do templo Seishō-ji, mas se mudou para o edifício comercial vizinho ao templo, onde conta com espaçosas salas privativas, todas com vista para o jardim, e manteve o estilo arquitetônico tradicional japonês, o sukiya. Já na quarta geração da mesma família, o restaurante proporciona uma refeição exclusiva, silenciosa e quase monástica, com pratos lindamente apresentados e os melhores ingredientes da estação.
Assim como no Daigo, no Seisoka 青草窠 você entra e sai sem ver qualquer outro cliente, mesmo se o restaurante estiver lotado, tamanha a privacidade. Em uma pequena construção contemporânea e minimalista, próxima ao templo Tengen-ji, o Seisoka serve chakaiseki, uma refeição em forma de arte pensada para a cerimônia do chá, o chanoyu.
Você nunca saberá exatamente o que vai comer, já que nenhum desses restaurantes tem cardápio, pois sempre são usados os melhores ingredientes disponíveis na época.
Do Seisoka, nunca vou me esquecer do figo fresco – maduríssimo, suculento e delicioso – servido com uma pasta de gergelim com miso branco (pasta de soja com fermentação mais curta, por isso mais clara) e flor de shiso. No budismo existe um pensamento de que a busca pelo prazer não leva a uma vida com menos sofrimento. Mas a experiência de viver o shojin-ryōri, mesmo que por algumas horas, nos faz sentir mais próximos do nirvana, da iluminação.
TERESA PEREZ INDICA
Reserve com Teresa Perez CollectionOnde Ficar
Bulgari Tokyo
O oitavo hotel que leva o nome da marca de joias italiana ocupa os últimos cinco andares do complexo Tokyo Midtown Yaesu, do 40º ao 45º andares. A vista panorâmica da megalópole é das mais impressionantes (para economizar energia, as janelas do quarto se fecham assim que você sai, mas basta abrir a porta para as persianas se abrirem para a vista). O hotel tem áreas ao ar livre, jardins no spa e no bar do último andar; uma raridade entre os hotéis-de-luxo-no-topo-de-prédios de Tóquio.
Janu Tokyo
O primeiro hotel da nova marca da rede Aman, a Janu, segue o alto padrão dessa que é uma das referências de hotelaria de luxo no mundo, mas é mais “social”. Enquanto os hotéis Aman são santuários de privacidade e exclusividade, os hotéis Janu têm como proposta ser mais conectados com os destinos, principalmente por meio de diversos restaurantes, bares e espaços de bem-estar abertos para não hóspedes. No novíssimo e grandioso complexo de Azabudai Hills – com oito hectares, praticamente um bairro, do qual faz parte a JP Mori Tower, o novo edifício mais alto de Tóquio e do Japão, o recém-inaugurado hotel, ocupa os 13 primeiros andares de um dos dois edifícios residenciais do complexo.