
Os meses que antecederam a viagem foram preenchidos por uma expectativa quase infantil. Mas não pesquisei absolutamente nada e essa estratégia foi proposital: sou obcecada por surpresas, gosto da sensação de ver algo pela primeira vez e queria ver e sentir ao vivo e em cores.
Como tudo começou… Era uma data especial. Ele estava na cozinha, preparando um jantar enquanto eu o observava e aguardava. Foi então que ele se aproximou, segurando um envelope preto nas mãos. Com o semblante sereno e calmo e com a elegância que lhe é tão própria, entregou-me o envelope. Silêncio. Dentro, um mapa da China e uma anotação que dava o recado: em 27.12.24 embarcaríamos para uma imersão no “império do centro”.
No início, fiquei encarando o mapa como se tentasse decifrar algo mais profundo do que os nomes das cidades. Três círculos destacavam as cidades de Pequim, Hangzhou e Xangai. Lugares que até então eram imagens distantes começaram a se transformar em um destino.

Ele sabe como a ideia de viajar e conhecer coisas novas me move, abre espaços em mim. E sabe também do meu gosto por turismo hoteleiro. Explico: brinco que sou “sommelier de hotel”, amo a experiência, noto e curto cada detalhe e esse hobbie é tamanho que há uma série de itens na minha bucket list, onde a cidade em si não me interessa muito, mas está ali porque abriga algum hotel especial.
E a viagem que aquele envelope me apresentava não era “só” uma viagem que alimentaria minha curiosidade e apreço por hotéis; ficaríamos na minha rede predileta: Aman, que não só oferece estadias luxuosas, mas cria experiências que transformam o ato de viajar em algo quase ritualístico. E quando eu achava que não poderia ficar melhor, ele completa dizendo que faremos uma Aman Journey, que propõe roteiros personalizados que combinam várias propriedades da rede, permitindo que os hóspedes façam uma jornada imersiva por diferentes destinos.
A ideia é proporcionar uma experiência contínua e sem esforço, com transporte, itinerários e serviços altamente personalizados e atividades sob medida. Volta e meia, eu e meu namorado dizíamos um ao outro em tom solene, ”Falcon is arriving”, como se fôssemos parte de uma comitiva presidencial em missão ultrassecreta. A precisão da Aman Journey beirava o surreal—carros apareciam exatamente no minuto certo, malas magicamente surgiam nos quartos antes mesmo de percebermos sua ausência, e cada check-in era tão fluido que parecia que o mundo inteiro já sabia que estávamos chegando. Ufa, não preciso mais me candidatar à presidência para saber como funciona a logística impecável de um chefe de Estado.

ENTRE PORTAS E PAVILHÕES: AMAN SUMMER PALACE, PEQUIM
Do agito moderno das ruas à solenidade imutável de seus monumentos históricos, a cidade é um choque de eras, mas foi chegando no Aman Summer Palace que senti que a viagem havia verdadeiramente começado.
O hotel não era apenas a materialização do luxo (no sentido puro da palavra!); era um portal. O Summer Palace era o refúgio imperial para os meses quentes, um verdadeiro oásis onde os imperadores da dinastia Qing buscavam descanso e entretenimento longe da Cidade Proibida. Construído originalmente no século XVIII, o palácio foi concebido como um enorme jardim imperial, repleto de pavilhões, templos, pontes e um vasto lago artificial, o Lago Kunming, inspirado no Lago Oeste de Hangzhou.
Hoje, o Palácio de Verão é um Patrimônio Mundial da UNESCO e um dos pontos turísticos mais impressionantes de Pequim, combinando arquitetura tradicional chinesa, paisagens deslumbrantes e uma forte conexão com a história imperial do país. Essa herança histórica é ainda mais vivida nas antigas residências de hóspedes do palácio, que, antes destinadas a emissários estrangeiros e visitantes da corte imperial, foram preservadas e transformadas no Aman Summer Palace, um dos mais exclusivos da rede Aman.

Edifícios históricos – que datam da dinastia Qing – tiveram sua arquitetura original preservada. Pense em pátios serenos, telhados ornamentados e interiores refinados que evocam a elegância da China imperial. No entanto, o espaço foi adaptado para oferecer todo o conforto contemporâneo, mantendo o charme e a aura de um refúgio histórico, proporcionando aos visitantes a atmosfera que dignitários e altos funcionários da corte experimentavam séculos atrás.
O detalhe mais especial? Uma porta discreta que conecta diretamente o hotel ao Palácio de Verão, permitindo que os hóspedes acessem esse ícone imperial como se fossem membros da corte, longe do burburinho turístico. Uma experiência que transforma qualquer passeio pelo palácio em um verdadeiro ritual de viagem no tempo.
A tal porta ficava ao lado de um pavilhão original da dinastia Qing que foi transformado em um – mega – quarto do Aman. E adivinhe quem se hospedou no pavilhão encostado na porta secreta? Isso mesmo. A sensação de atravessar a porta era um tanto quanto surreal. Saíamos do nosso refúgio privado e, em uns quatro passos e meio, atravessávamos o limiar para o esplendor do Palácio de Verão.
A luz suave da manhã iluminava os pavilhões e o lago congelado pelo frio, enquanto o som distante do vento nas árvores completava o cenário. Era como se o tempo parasse, permitindo que vivêssemos um momento único e profundamente conectado à grandeza da história chinesa.
A porta era deveras conveniente, devo dizer. Logo no começo do passeio pelo palácio de verão, sentimos muito frio e percebemos que não estávamos agasalhados o suficiente. Sem pensar duas vezes, voltamos para o quarto para trocar de roupa e, com a mesma naturalidade com que se executa a mais banal das ações, atravessamos novamente a portinha e retornamos ao (nosso?) palácio, como se fosse uma extensão do nosso lar.

Essa intimidade inesperada com o espaço histórico transformou o passeio em uma experiência que parecia feita sob medida para nós. Rompendo o perímetro do hotel, entre passeios pela Grande Muralha e a Cidade Proibida, senti como se estivesse vivendo na cidade Orweliana de 1984, no qual a vigilância e a ordem são imposições implacáveis.
As ruas – impecavelmente limpas – parecem desenhadas para refletir o poder absoluto, e cada construção era uma constante demonstração de força. As câmeras estão por toda parte, observando, registrando, sem que se perceba a linha tênue entre segurança e controle. A Praça Tiananmen, com seu silêncio pesado, completou essa sensação de estar em uma outra era.
Adeus Pequim, era hora de partir para Hangzhou, e escolhemos fazer esse traslado de trem, assim poderíamos ver as cidades e as transições de paisagens. E tudo correu de forma muito suave, afinal, “Falcon is arriving” e tínhamos o Aman para cuidar de cada tempo e movimento.


O TEMPO SUSPENSO: AMANFAYOUN, HANGZHOU
Passadas seis horas de trem, chegamos na cidade apelidada de “o paraíso na Terra”, e não demorou muito para que eu entendesse o porquê. Ainda estávamos no carro a caminho do Amanfayun e o tempo já parecia ser diferente, mais lento, mais redondo e muito suave.
Estava escuro quando chegamos ao Amanfayun, fazia frio (menos que em Pequim) e havia uma névoa por todo o caminho de pedras até o lobby do hotel (que em nada se assemelha a um lobby de hotel), o que conferia um certo ar de mistério. Fomos recebidos com a gentileza tranquila do gerente geral, Alex Li, e, por gatos – sim, três gatos, que o Sr. Li brincou serem os verdadeiros donos da propriedade. Logo percebi ao ver os felinos se espreguiçando nas chaises sem qualquer tipo de cerimônia.
Entramos em um carrinho que percorreu um caminho de paralelepípedos coberto de vegetação, névoa e frio, foi quando consegui entender a estrutura do hotel. O Amanfayun ocupa a área de um antigo bosque que, por séculos, pertenceu a um conjunto de templos budistas nas montanhas de Hangzhou.

Diferente dos tradicionais hotéis urbanos, ele se organiza como uma vila chinesa histórica, com vielas de pedra sinuosas, telhados de azulejos escuros e pavilhões discretamente distribuídos entre bambuzais e plantações de chá. A arquitetura foi preservada para manter a atmosfera autêntica, com construções de madeira e tijolos cinzentos. Aqui, o luxo não está no brilho do ouro, mas no silêncio entre os muros de pedra e na sensação de estar imerso em um refúgio atemporal.
Saímos do carrinho, atravessamos vielas, até chegarmos a um muro discreto com uma pequena porta. Era a porta do nosso quarto. A abri e percebi que na verdade se tratava de uma casa inteira, original dos tempos da fazenda de chá, restaurada nos mínimos detalhes.
Do outro lado do pátio privado, a casa, toda em madeira escura, erguida com uma imponência silenciosa. Abri a porta da nossa casa e senti uma espécie de “esse deve ser o lugar”. O meu lugar. Era como se a madeira escura das paredes, o minimalismo do espaço, e a iluminação suave fizessem parte de um conjunto pensado para nada mais existir além daquela paz. O quarto era vasto e acolhedor, mas de uma forma tão serena que tudo parecia acontecer mais devagar.
Confesso que ao cruzar o limiar da porta, involuntariamente emiti um som que tinha algo de deslumbramento e descoberta de algo que eu queria, mas não sabia. Tudo materializava o meu desejo de descanso, de quietude. O silêncio da villa não era vazio e tem me colocado para pensar até hoje.


O Sr. Li bem que avisou: dormiríamos e descansaríamos profundamente. Profecia concretizada com louvor. A experiência se aprofundou quando descobrimos que, mais uma vez, tínhamos uma passagem privilegiada—dessa vez, uma simples cancela separava o Amanfayun de um templo budista, nos concedendo um acesso exclusivo a esse refúgio de serenidade.
Mais tarde naquele dia, tentamos aprender caligrafia—eu, com uma dificuldade que me fez rir de mim mesma, enquanto meu namorado parecia ter nascido para aquilo, com a caneta deslizando sobre o papel com a precisão de um mestre.
Na manhã seguinte, embarcamos em um barco tradicional chinês para navegar pelo Lago Oeste. Esse nome te lembra algum outro lado? Sim, o lago que inspirou a criação do Lago Kunming no Palácio de Verão. Deslizamos pelas águas que deram origem ao sonho imperial—um cenário tão poético e idílico que, por séculos, serviu de musa para poetas, pintores e imperadores.
No Amanfayun, cada detalhe parecia um convite para mergulhar em outra dimensão do tempo e eu não queria mais ir embora, menos ainda que aquela sensação fosse embora de mim. Mas Xangai estava a nossa espera.

CENÁRIOS DE ENCANTAMENTO: XANGAI
Mais uma viagem de trem, dessa vez rápida, de uma hora. A estação de Hangzhou era grandiosa, impressionante e futurística. Chegamos em Xangai e o motorista que nos acompanharia por todos os dias na cidade já estava a nossa espera. Dindin falava um inglês muito bom e era extremamente atencioso. Nos levou diretamente ao Amanyangyun, que logo descobrimos ser um feito arquitetônico impressionante, um projeto que vai muito além do luxo, sendo um verdadeiro ato de preservação histórica.
Isto porque a história do Amanyangyun começa a mais de 700 km dali, na província de Jiangxi, onde uma antiga floresta de cânforas e vilas da dinastia Ming e Qing estavam ameaçadas pelo avanço de uma barragem. Para impedir que esse patrimônio desaparecesse, um visionário empresário chinês liderou uma operação colossal: mais de 10 mil árvores centenárias foram cuidadosamente desenterradas e transportadas por quatro anos até Xangai, junto com 50 casas históricas de pedra e madeira, desmontadas e reconstruídas peça por peça.

O resultado é um santuário onde passado e futuro se encontram—vilas centenárias transformadas em suítes elegantes, templos restaurados, que agora abrigam experiências culturais, e uma floresta renascida que dá nome ao lugar (yangyun significa “nuvem de cânfora eterna”). No Amanyangyun, cada detalhe conta essa história épica de resgate e renovação.
Se por um lado o Amanyangyun é um oásis de descanso e tranquilidade, a apenas 20 minutos dali, no centro de Xangai, o ritmo da cidade é completamente diferente. Ali, a modernidade e a energia vibrante tomam conta das ruas.
Exploramos o Bund e, graças às concessões europeias do passado, em certos momentos me senti em Londres, horas em paris e, atravessando para Pudong, fomos imediatamente lançados para o futuro. Os arranha-céus e a modernidade te levam para o mundo dos Jetsons. A cidade é um paradoxo vibrante, e, por isso, fascinante. Ter de dar tchau para o Aman e a China foi uma pontada no meu coração. Antes mesmo de partir eu já sentia saudade da cordialidade e gentileza dos chineses e de como me senti durante esses 10 dias.

ENTRE PASSADO E FUTURO: A JORNADA SILENCIOSA DO AMAN E DA CHINA
Quando penso nessa viagem, não penso apenas nos lugares que visitamos, mas na maneira como os vivemos e, sobretudo, como nos sentimos. Há algo de extraordinário no cuidado com que cada momento foi pensado. Ao final da nossa Aman Journey, compreendi o fio condutor dessa experiência: o hotel nos levou por uma história que começava na China Imperial, passava pela pitoresca Hangzhou e chegava ao futuro pulsante de Xangai.
Nessa jornada, percebi que, apesar de sua bagagem milenar, a China, longe da visão “cheia de verdades” e míope do Ocidente, dá passos largos em direção ao futuro, sem se apoiar em autorreferências ou se prender ao passado. Enquanto o Ocidente tende a desacreditá-la, a China silenciosamente avança, conectando suas raízes profundas com um futuro cosmopolita e moderno.

O que fica? Muitas lembranças e fotografias, mas em especial uma sensação — difícil de descrever — de ter sido tocada em um lugar profundo, especial e essencial.
E tudo isso foi meu. É meu. E será sempre meu.
Um agradecimento especial ao meu namorado que tem o dom de saber o que eu preciso muito antes de mim e não cansa de surpreender.