Em 2001, quando a Unesco incluiu a região do Douro na sua lista de Patrimônios Mundiais da Humanidade, dentre as diversas justificativas constava que a paisagem cultural do Alto Douro Vinhateiro seria um “exemplo notável da relação única do ser humano com o ambiente natural, uma mostra excepcional da cultura vinícola europeia tradicional, refletindo a evolução desta atividade humana ao longo dos tempos”.

Os registros da relação emocional do povo do norte de Portugal com a sua terra datam de mais de 2 mil anos, quando teve início a criação de um ecossistema de valor único por tradicionais proprietários dessas terras, com as características de cada terreno sendo aproveitadas “em camadas”, os chamados socalcos, deixando o terroir protegido da erosão e permitindo o cultivo da vinha.

Vista do Vale do Douro Alexandre Eça

Essa história significativa, contada com orgulho pelos atuais donos de quintas e vinícolas do Douro, ganhou um novo capítulo a partir do século 18 quando um autêntico commodity mundial teve suas características e processos definidos – o vinho do Porto. O vinho “fortificado”, que tem sua fermentação interrompida quando se adiciona bebida alcoólica destilada de uva – aguardente – preservando a doçura natural, característica mais palatável do produto, também tem papel ativo na perpetuação de uma economia próspera e sustentável. O conjunto de socalcos, onde são cultivadas as vinhas do Porto e dos vinhos de mesa do Douro, até hoje moldam os cenários da região, estampando imagens que funcionam como cartões postais para o mundo. 

Das diversas maneiras de desbravar o norte de Portugal e seus sabores, uma road trip por estradas muito bem cuidadas, ladeadas por um sem fim de oliveiras e vinhas, e que passa por aldeias e vilarejos que parecem congeladas em outros tempos, é certamente uma das mais imersivas e ricas. Foi o que eu fiz no início desta primavera europeia.

SÍMBOLO DO CONTEMPORÂNEO

A primeira coisa notável quando se chega à cidade do Porto, ponto de partida natural para conhecer o norte de Portugal, é o número de guindastes, dezenas deles, que pontuam o horizonte do destino batizado como Portus pelos romanos no século 1 a.C. Isso porque o Porto se encontra em um ritmo acelerado de modernização. A segunda maior cidade de Portugal, atrás apenas da capital Lisboa, vibra com uma população jovem que parece ávida por trilhar caminhos modernos. Em um primeiro momento, fica até difícil perceber que a sua área central está listada entre os patrimônios da humanidade pela Unesco, com tantas obras por todos os lados. Porém, aos poucos a história do Porto vai se fazendo presente, dividindo o espaço com esse desejo de ser uma cidade protagonista do futuro.

A arquitetura contemporânea da Casa da Música do Porto

O centro da cidade é perfeito para ser percorrido a pé e em cerca de uma hora é possível passar por pontos famosos como a Igreja de São Francisco, erguida no século 15, a Livraria Lello, adorada pelos fãs do bruxinho Harry Potter (espere por filas intermináveis), e o neoclássico e agora renovado Mercado do Bolhão com dezenas de bancas de frutas, embutidos, frutos do mar, box de artesanatos, cafés gourmet e restaurante. Estar no Porto e não explorar ao máximo a sua cultura dos vinhos é quase um desperdício, afinal não há refeição que não seja encerrada com seu principal produto de exportação, o vinho do Porto. Algumas caves, como a popular Caves Ferreira, proporcionam visitas guiadas e sessões de degustação dos seus rótulos mais célebres.

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Na margem sul do rio Douro, em Vila Nova de Gaia, o WOW é outro dos hotspots. Com 55 mil metros quadrados de área, esse centro de arte e gastronomia é um belo e moderno elogio à cultura do vinho, abrigando sete museus temáticos, além de restaurantes como o Golden Catch, focado em peixes e mariscos; o T&C, de culinária clássica portuguesa; o japonês Subenshi; e o 1828, especializado em carnes. E por falar em restaurantes, o Porto não economiza em boas mesas. Na cidade estão instalados desde casas estreladas, como o restaurante do hotel The Yeatman, até salões com assinaturas de celebrados jovens chefs portugueses, a exemplo de José Avillez (Cantinho do Avillez) e Henrique Sá Pessoa (Tapisco).

WOW Porto: imersão na cultura do vinho. Alexandre Eça
Caves Ferreira
Caves Ferreira

PARADAS OBRIGATÓRIAS

As estradas do norte do país são em sua maioria muito bem sinalizadas e cuidadas, o que facilita o trajeto com liberdade de paradas para descobrir as aldeias e vilarejos que formam essa linha ligando o Porto e o Douro. À medida que vamos nos afastando de um centro agitado como o Porto, a adrenalina baixa, tudo parece mais tranquilo, e vamos mergulhando em um outro ritmo. Dirigindo pela N2, estrada que corta o país de norte a sul, apenas 60 quilômetros de belas paisagens formadas por vinhas e oliveiras separam o Porto da pequena e absolutamente charmosa Guimarães. Terra natal de Afonso Henriques, primeiro rei independente de Portugal, Guimarães preserva seu passado, como um castelo que data do século 10, com uma indisfarçável atmosfera de vibração originada de uma população jovem e um vai-e vem de gente caminhando de um lado para o outro, sempre com celulares e câmeras a postos. Sim, Guimarães é altamente fotogênica.

Castelo de Guimarães Alexandre Eça
Castelo de Guimarães Alexandre Eça

A visita a Guimarães pode se justificar pela experiência gastronômica proporcionada pelo restaurante A Cozinha. A casa instalada no Largo do Serralho é comandada pelo talentosíssimo chef António Loureiro e vem mantendo sua estrela Michelin desde 2019. O restaurante propõe um despertar dos sentidos numa celebração do mais alto nível à mesa. O chef entrega uma culinária de sabores intensos e apaixonados conjugando criatividade, produtos com técnicas contemporâneas e pratos com forte ligação ao passado. O resultado é um ótimo equilíbrio entre aromas, texturas e intensidades nos menus degustação que mudam a cada estação do ano e são harmonizados por uma carta de vinhos enxuta focada exclusivamente em rótulos portugueses.

Para além da sedução gastronômica, Guimarães merece a visita pelo seu centro medieval considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco: formado por ruelas, labirintos com construções do século 14 e pequenas praças cheias de bossa, como o Largo da Oliveira, se destacam um santuário gótico datado do ano de 1340 e uma dezena de charmosos restaurantes de especialidades portuguesas e internacionais.

A visita a Guimarães pode se justificar pela experiência gastronômica proporcionada pelo restaurante A Cozinha, do talentosíssimo chef António Loureiro.

Igreja Nossa Senhora da Consolação e Santos Passos Alexandre Eça
Restaurante A Cozinha Divulgação
Estrelado pelo Guia Michelin

O DOURO DAS QUINTAS E DOS HOMENS

Conhecer o Vale do Douro é antes de qualquer coisa entrar em contato direto com atradição. Desde 1756, quando se tornou a mais antiga área demarcada para produção de vinhos do mundo, o Douro firmou-se como a região símbolo dos melhores rótulos portugueses. E isso passa, evidentemente, por mesas em que o vinho é sempre a estrela, com incontáveis tintos, brancos e rosés reconhecidos pela alta qualidade. A estrada N222, entre Peso da Régua e Pinhão, é considerada uma das mais belas vias panorâmicas de Portugal e pode ser o caminho que nos leva à uma informal rota dos vinhos no Vale do Douro.

Uma das características do Douro é que, diferentemente das paisagens onde a natureza agiu caprichosamente, aqui os cenários foram moldados pelo homem. Quase 30 mil hectares de vinhas, cerca de dois terços de toda área plantada da região, estão localizados em encostas rochosas, natural desafio para se criar uma superfície plana para instalar a vinha. E aí entra a mão do homem, que criou e moldou ao longo do tempo uma maneira de aproveitar as características de cada terreno em patamares, uns acima dos outros, os chamados socalcos, que deixa o terroir protegido da erosão e permite o cultivo da uva. Olhando-se de baixo, às margens do rio Douro, temos o panorama completo dessas camadas responsáveis pela riqueza dos seus vinhos, com as variações no que refere ao vento, à altitude, ao acesso à água, exposição ao sol e fertilidade do solo. História e engenhosidade que justificou a entrada da região na lista de Patrimônios Mundiais da Humanidade em 2001.

Alexandre Eça

Percorrendo os caminhos do Douro é impossível não ter a curiosidade de conhecer as melhores entre centenas de quintas e adegas que pontuam os horizontes do destino. Muitas delas com forte ligação com antigos pequenos proprietários de terras da região, que se modernizaram em uma evolução tecnológica, social e econômica. A Quinta do Seixo é dona de uma adega moderna, envolta em uma paisagem deslumbrante com vista para o rio e programação intensa de degustações dos seus melhores rótulos. Outra visita altamente recomendável é à Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, inaugurada em 2005. Os visitantes podem viver o verdadeiro espírito do Vale do Douro, acompanhando as atividades vínicas da Quinta com direito a almoço à sombra de limoeiros, tudo em perfeita harmonia.

Na Quinta da Pacheca, uma das quintas mais conhecidas e também um hotel de mesmo nome, encontramos uma sala de provas que deixa à disposição toda a gama de vinhos da empresa, bem como algumas raridades como Reservas, Vinhos do Porto Velho, compotas caseiras, azeites e outros produtos locais. Ao final da viagem, percebemos que o Douro é moldado pelo homem com total respeito à natureza. Pertence aos pequenos comerciantes, aos donos das suas históricas quintas, ao seu povo hospitaleiro e de comovente simplicidade, mas também a todos aqueles que desejam celebrar momentos da vida. Celebração que jamais exclui um cálice do vinho do Porto.

TERESA PEREZ INDICA

Reserve com a Teresa Perez

Onde Ficar

Vinha Boutique Hotel, Porto

Às margens do Douro, a apenas 15 minutos de carro do centro da cidade do Porto, o hotel combina a tradição de ter uma parte instalada em um palacete do século 16 e uma ala moderna, inaugurada em 2020. Destaque para as suítes com assinaturas de grande casas de moda como Lacroix, Hermès e Missoni; para Spa Sisley Paris, com piscina indoor, vitality pool, salas de tratamento e hammam; e para o restaurante Vinha que tem assinatura do duplamente estrelado chef Henrique Sá Pessoa.

Quinta da Pacheca, Douro

Blend de hotel e vinícola, a Quinta da Pacheca tem pegada contemporânea e acomodações instaladas em duas categorias. As suítes com varanda ficam no prédio principal e os dez pitorescos Wine Barrels estão instalados na área das vinhas, em formato de barris de vinho. O hotel mantém um spa baseado em terapias que utilizam uvas e vinhos, além de restaurante, piscinas indoor e externa, wine shop, e atividades como workshops gastronômicos e passeios de barco e helicóptero.

The Yeatman, Porto

Rodeado de extensos jardins e com magníficas vistas panorâmicas, o The Yeatman está inserido na zona histórica das Caves de Vinho do Porto, com fácil acesso à cidade. São 109 amplas acomodações, algumas com vista para o Rio Douro, varandas particulares e decoração com objetos que remetem à história de cada adega da região. O Restaurante Gastronômico, comandado pelo chef Ricardo Costa e estrelado duas vezes pelo guia Michelin, apresenta uma combinação entre a tradicional cozinha portuguesa e a contemporânea, enquanto o Dick´s Bar conta com uma extensa lista de vinhos.

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